sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Diário de 28 dias pós estupro - L.F.S., 34 anos - 25 dia

Os pesadelos chegaram para ficar. Ela sabia que estavam ali, mas não se lembrava de seu conteúdo. Mais uma vez acordou às 3 horas da manhã, desta vez banhada em suor frio. Costas, testa, peito molhados. Teria revivido  o trauma em sonho? Não tinha idéia, não conseguia voltar ao sono. Restava escrever, ainda era cedo para tomar os remédios. Introduzira por sugestão de uma amiga médica um medicamento em jejum que prometia proteger o estômago. Ela que não gostava de medicamentos aderira a este exausta da batalha que seu corpo vinha travando com a medicação e que colocava seu estômago e intestinos no centro do Universo.

Decidiu tirar uma licença do trabalho. Não havia alternativa para ela, sequer sabia como seria quando a licença acabasse. Ela não conseguia se imaginar novamente rodeada por aquelas paredes, atravessando aquele corredor. Era um misto de dor e vergonha que não a abandonava e, sentia, estaria com ela ainda por muito tempo. Mas estava viva - não sabe bem como - mas estava. De súbito percebeu-se desejando sumir, desaparecer da Terra. Para ser bem honesta o que queria era morrer. Nada mais fazia sentido  e só quem viveu essa experiência haverá de entender o que sentia. Faltava sentido.

Os filhos àquela altura, que nada sabiam sobre o ocorrido, não entendiam a mãe estendida na cama dia inteiro. Ela fora dinâmica sempre, agora era uma samambaia no canto da sala. Talvez a samambaia fosse mais vívida que ela. Estava apática a maior parte do dia. Corpo, mente e psique sofriam diante da violência experimentada. Que fazer para reparar isso? Perguntava-se e culpava-se pela desatenção com os filhos, pela ausência na escola, mas não podia pensar na escola. Não podia pensar na ideia de voltar lá.

O delegado a havia quase dissuadido de prestar queixa. As razões eram racionais. Era fato que mesmo com o exame de corpo delito era ela que a todo instante teria de provar que era a vítima. Ele mesmo insinuou mais de uma vez durante o depoimento que ela poderia ter ''provocado'' de alguma forma. Perguntou sobre o que vestia, sobre a proximidade com o autor da violação. A questionou tantas vezes e de várias maneiras sobre a autoria, ante a sua confusão mental diante da reconstituição de memórias e seu abalado senso de orientação. Por fim disse que no final poderia não dar em nada e ela teria manchado sua reputação no trabalho, na vizinhança, com as pessoas da comunidade escolar. Ela ouvia aquela voz longe de si e pensava ''eu fui a vítima'', ''fui agredida e violada'', ''eu vou pagar por isso?''

Já estava pagando. Pagou no IML, paga até hoje e ainda por mais 24 dias tomando esse bendito coquetel que a protegerá de um mal maior. Pagou no primeiro dia quando vomitou mais de 8 vezes e se esvaiu em diarréia, olhos fundos, corpo surrado pela violência dos espasmos gástricos. A medicação para proteger o estômago foi um alívio para os vômitos a partir do segundo dia. Agora só restava a diarréia que aos poucos ia cedendo ou pelo menos tornara-se menos violenta. O tempo das batalhas sangrentas no corpo ia passando, o inimigo ia sendo vencido - torcia! - pelo exército químico que ingeria. As tropas biancas, comandadas pelo Ritovanir, pelo Sulfato de Atazanavir e pelo Fumerato de tenofovir - desoproxila, pelo visto já dominavam o inimigo e aos poucos seu intestino ia voltando ao trabalho. Seja lá o que isso efetivamente signifique.

Adormeceu novamente exausta enquanto o sol se levantava, podia não acordar mais.



quarta-feira, 12 de outubro de 2016

28 dias de L.F.S. 34, pós estupro - Faltam 26 dias



Às vezes é preciso fazer pausas para lidar com temas difíceis na vida. A violência que L.F.S, 34 sofreu a jogou numa montanha russa emocional por uns dias. Especialmente esses primeiros dias sob efeito do coquete preventivo, que é gratuitamente distribuído no Brasil pelo SUS. Os remédios nocauteiam não apenas o corpo, a mente parece, em alguns momentos flutuar na caixa craniana. Isso não dura muito. Conforme o corpo vai se adaptando, a mente - o cérebro - vai assentando, digamos assim.

Mas as emoções, estas não são nem apartadas nem completamente identificadas com a mente. São de outra ordem, uma ordem que influi na mente, mas não se confunde com ela. E a memória dos momentos que antecederam o episódio do estupro visitou-a no terceiro dia. Junto com as memórias as perguntas - sempre sem resposta - de quem dentro dela não podia acreditar ainda que aquilo tudo havia acontecido.

Na manhã do terceiro dia de medicamentos acordou às 3 da madrugada assustada, seria efeito do trauma? Não pode mais dormir. Pensamentos desconexos a visitavam. Tentava lembrar do sonho que a despertara sem sucesso. Tentava lembrar como havia ido parar naquela situação. Buscava na memória algo que tivesse feito ou algo que tivesse dito para que ele pensasse que podia se aproximar dela daquela maneira. Não encontrava. 

Ela ficara na escola até mais tarde porque tinha pilhas de provas para responder. Quando ele se aproximou da porta silenciosamente ela nem notou sua chegada. Quando notou não se surpreendeu ou se assustou. Ao contrário, sorriu como de hábito, afinal eram colegas há mais de 10 anos e ele era casado com uma de suas melhores amigas. Os filhos brincavam juntos, tinham praticamente a mesma idade. Nada havia ali que pudesse ligar qualquer sinal de alerta. Era um homem de sua confiança. Sereno, calmo, intelectual, gentil. 

Havia uma brisa fresca que entrava pela janela e ainda um pouco de luz natural que aos poucos ia embora. Ainda assim, a escola já estava deserta. A atividade do dia dos pais tinha acontecido pela manhã e ela aproveitara que seus filhos estavam com o pai deles para esticar no trabalho e adiantar as correções. 

Vagamente se lembra de ter-se levantado para falar com ele, havia algo no planejameto que ele dissera que precisava de sua opinião.  Estavam lado a lado, ela leu o documento. Acho que era a última memória vívida. Nada havia ali, a princípio que demandasse de fato sua opinião. Estava tudo como deveria, nenhuma inovação, apenas o que era. Virou-se para responder a pergunta que ele fizera.

E lá estava ela deitada na maca fria, naquele ambiente gelado e estranhado IML. Gentileza passou longe daquele lugar inóspito por todas as razões e também pela forma como o médico legista tratou-a.  Sentia-se violada pelas perguntas secas, pelas mãos brutas, não havia qualquer calor ou compaixão naquele atendimento. Mas ela estava viva. Agora estava certa de que estava viva. 

Aos trancos e barrancos com a medicação. Seguia viva. Não sem marcas, mas viva. 

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

28 dias de L.F.S, 34 - pós estupro - Faltam 27 dias



Os sons do dia invadiram o quarto. Finalmente tivera uma noite inteira de sono desde o episódio. Lentamente abriu os olhos ofuscados pela luz do dia que entrava por uma fresta da janela. Por um instante buscou o gosto metálico na boca. Estava menos agressivo hoje. Suspirou fundo pensando que teria de tomar o coquetel preventivo novamente e novamente até o vigésimo oitavo dia. Mais um dia, não queria ter novamente um dia como o de ontem. Ou de anteontem ou do dia em que só lhe restou ficar inerte diante do ataque sofrido.

A pergunta martelava em sua cabeça

-''porque não conseguiu reagir?'
- '' porque não se debateu?''
- '' Porque o não repetido tantas vezes até sua voz sumir não foi suficiente?''

De nada adiantou a psicóloga do posto de saúde esclarecer que a reação de congelamento acomete muitas pessoas em situações de ataque inescapável. Quando o sistema nervoso autônomo, responsável pela resposta de luta e fuga é acionado, muitas vezes ele mesmo entende que lutar ou fugir não serão suficientes para evitar o ataque. Nesses momentos, resta como alternativa pela sobrevivência, congelar ou fingir-se de morto, como fazem os animais na natureza. Nunca ouvira falar sobre aquilo. Não entendia. O certo é que aconteceu com ela e ela não conseguiu reagir de forma efetiva para evitar o estupro.

- Mas conseguiu sobreviver - disse a psicóloga - E isso era o mais importante.

Ela não tinha certeza se queria ter sobrevivido. Quem sabe não seria mais fácil se tivesse sido morta de uma vez. Levantou-se lentamente e preparou-se para tomar mais uma dose. Comeu pouco. Apenas o suficiente para tornar o contato da medicação com o estômago menos agressiva. Em seguida, respirou fundo e um a um engoliu as drogas. Silenciosamente pediu que a peia fosse mais branda naquele dia. Não suportaria passar por tudo novamente e agradeceu estar podendo preservar ao menos a saúde.

Meia hora foi o suficiente para iniciar o ciclo da diarréia. Felizmente não havia, pelo menos até aquele momento, vômitos. O enjoo permanecia, ainda um pouco de tontura. Só a diarréia firme seguia. Foi assim durante todo o dia. Não reclamou. Ela ao menos podia tomar água de côco e reidratar-se de algum modo. A energia vital estava baixa. Só tinha vontade de dormir. O corpo estava invadido por um exército poderoso com milhares de soldados que caçavam implacáveis um vírus que não tinha certeza que estava lá. Não importava, tal qual o exército estadunidense no Iraque, não importava que não houvessem armas de destruição em massa no país, eles tinha de eliminar o inimigo e para isso destruiriam tudo o que encontrassem pela frente. No seu caso, toda a sua flora intestinal, suas vísceras, todas as bactérias felizes que viviam em seu corpo há anos. Era uma invasão e tanto.

A ela não importava se havia ou não armas de destruição em massa, só queria fazer o próximo teste - em dois meses - e receber um resultado ''NÃO REAGENTE``.

As horas se arrastavam. Tentou ler, não conseguiu. Tentou escrever não era possível. O raciocínio estava algo lento. E assim a temida hora do almoço chegara. Comeu pouco e leve, ainda ressoava a memória do dia anterior. As horas passaram e nada novo aconteceu. A diarréia seguia com ela. Mas nada de fortes enjoos. Sentia que estava melhor. Iria ficar cada dia melhor. Melhor e mais forte, havia sobrevivido.

Dormiu cedo, exausta como se tivesse corrido um maratona no inverno novaiorquino.


quinta-feira, 29 de setembro de 2016

28 dias de L.F.S, 34 - pós estupro - Primeiro dia


No Brasil a cada 11 minutos uma mulher sofre estupro. Isto é, aqueles que são notificados. Ainda assim é assustador pensar sobre isso.

Acordou e a boca estava amarga, mal podia abrir os olhos. Precisava trabalhar. Lembrou-se do dia anterior e deixou-se afundar no colchão. Virou para o lado. Lá estavam os três frascos de medicação. Seriam seus companheiros nos próximos 28 dias. Precisava levantar, mas o corpo só queria permanecer ali, embaixo das cobertas, no quarto ermo, encolhida e quieta. Não bastavam as dores no baixo ventre, tinha o metálico sabor dos antibióticos da noite anterior na boca. Mal sabia... Podia piorar.

Arrastou o corpo até o banheiro, dor ao urinar ainda incomodava, menos mas persistia mesmo depois de  toda aquela medicação agressiva. Diarréia. Faltava energia no corpo, estava cheia de vergonha e vontade de sumir. Não era possível, tinha de trabalhar. Entrou embaixo do chuveiro tentando tirar da pele aquele cheiro desconhecido que a incomodava desde o dia anterior. Nada o fazia sumir.

Sentia-se enjoada, mas precisava comer para tomar o coquetel anti-HIV. Não era justo pensar nesse vírus, não com ela. Sempre tão cuidadosa... Conseguiu tomar um chá com torradas, o enjoo melhorou com a refeição. Encarou o primeiro dos próximos 27 dias com coragem. Essa doença não ia pegá-la por nada. Separou cuidadosamente as duas pílulas e a cápsula bicolor, fixou o olhar por um instante, tomou as três de uma única vez. E partiu.

Chegou ao trabalho atrasada. Não sabia o que dizer. Esteve no posto de saúde, sim, esteve. Só o colega que a encontrou no piso da sala de aula quase catatônica sabia do ocorrido. A coordenadora não tinha idéia, ninguém tinha idéia do que passara na escola no dia anterior. Sorte que hoje não tinha sala de aula, não saberia encarar os alunos. Mal podia explicar o que a levou ao posto de saúde todo o dia anterior. Inventou uma infecção qualquer. Sentou-se em silêncio. Tudo parecia em câmera lenta. Ela estava em slow motion. Procurou fixar-se no trabalho, três pacotes de provas para corrigir. Chegou a pensar em fazer o trabalho em casa. Não sabia o que era pior estar ali em meio a todos os colegas ou se estar sozinha no seu quarto pequeno, em profundo silêncio. Tinha vontade de desaparecer.

Convidou Marcos para almoçar, cuidando para que fossem a sós. Precisava falar sobre tudo, não podia partilhar com qualquer outra pessoa o peso daquilo que ela mal compreendia. Foram juntos, não tinha fome. Tinha enjoo. Forçou-se a comer um pouco. Menos da metade do que era seu habitual. O gosto amargo sumiu. Por um instante acreditou que estava bem. Até levantar-se da mesa para pagar a refeição e perceber que o restaurante girava.

O medo do estupro assola a todas nós. Andamos nas ruas, tomamos o coletivo, entramos no metrô, vamos a festas, usamos taxi, sempre com medo. Em todos os lugares o perigo pode estar nos espreitando. Nunca imaginei que fosse acontecer no meu local de trabalho, no sagrado espaço da sala de aula. Ainda parecia um pesadelo do qual não acordava.

Caminhei ligeira de volta à escola, enquanto Marcos ia buscar minhas coisas na sala dos professores Direto para o banheiro. Sentia as vísceras se remoendo. Vômito, vômito, vômito. Três jatos intervalados. Todo o almoço boiando no vaso sanitário, no chão, nas paredes. Todos os dias seriam assim? Os olhos transbordavam pela força dos espasmos.

Lavou a boca. Olhou-se no espelho, estava pálida, olhos fundos, perdidos. Lavou o rosto, saiu. Marcos a levou até a porta da escola, parou um táxi a colocou lá dentro. Ele vinha sendo sua mão salvadora desde aquela tarde que acordou deitada no chão da sala, calcinha rasgada ao lado do corpo, peitos à mostra sem entender o que havia acontecido. Ele a encontrou assim. Foi a voz serena que a ajudou a ir voltando aos poucos. A acompanhou em todas as etapas. O táxi estava quase em casa. Ela rezava para chegar logo. Os enjoos estavam voltando.

Enjoos. Vômitos. Água de côco. Enjoos. Vômito. Água de côco. Enjoos. Vômito sono, muito sono. as vísceras reviradas. Nada mais no estômago a por para fora. Só bilis e dor. E a diarréia não parava. Os espamos, a certa altura, eram tão violentos que urina escorria por suas pernas. É uma cena algo escatológica, mas quem disse que não é escatológica a situação de um estupro? A violência não acaba com o gozo doentio do estuprador. A violência persiste a cada olhar, a cada passo, a cada vômito. E pelo visto persistirá por mais 27 dias.

Exausta cochilou sem noção de que horas eram e tendo a clareza que precisava partilhar essa dor. A dor de ter seu corpo violado, a dor de ter seu corpo violentado por aquilo que poderá salvar sua vida: o coquetel. Bendito coquetel que me desmonta, me surra e me salva. Os efeitos do estupro são devastadores na alma de uma mulher. Desmonta por completo a auto-estima e o senso de confiança. Destrói qualquer possibilidade segurança na presença de um homem. Anestesia, desliga.

Adormeceu exausta.

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

28 dias de L.F.S, 34, pós estupro - Antes do Primeiro Dia



Um estupro pode durar 29 dias - o dia do fato mais os 28 de prevenção ao HIV (PEP). Depois de passar pela delegacia de polícia, onde foi confrontada e achacada, após o IML onde numa mesa fria foi examinada com total indiferença, la estava ela recebendo cuidados profiláticos. Na unidade de saúde pública em que foi atendida recebeu o primeiro olhar verdadeiramente humano após o ocorrido. Nada de perguntas desnecessárias, nada de violação de direitos, apenas o suficiente para o encaminhamento. Toda a equipe de saúde envolvida estava pronta para um olhar de cuidado e respeito.

Mesmo com todo o cuidado, a violência continua. Não é a violência sexual do estupro, nem a violência moral e emocional dos aparelhos de segurança pública, mas uma micro violência  a cada passo para os cuidados que tem de tomar para tentar garantir ao menos preservar-se das possíveis consequencias. Não dá para falar em saúde quando a integridade do corpo e da alma já foi violada.

Antes dos procedimentos de prevenção foi necessário fazer os testes rápidos para Sífilis, Hepatite B, Hepatite C e o tão temido HIV.  A primeira notícia é ''que esta testagem não retrata as consequências da violência, mas o estado de saúde naquele momento. A testagem para HIV somente após dois meses do intercurso sexual.'' Uma ou duas gostas de sangue e a infindável espera pelas barrinha coloridas no visor dos testes.

Enquanto espera, gira em sua cabeça a ideia de que tudo aquilo que parecia ter acabado, pode estar apenas começando. Por um instante mergulha o olhar nas paredes brancas e volta ao teto manchado pela infiltração que a abduziu da dor naquela tarde na escola onde trabalhava. Foi encontrada desacordada, sem marcas aparentes de violência, exceto pelo fio de sangue que escorria por suas cochas, olhos fixos no teto da sala de aula. O corpo ainda gelado, reflexos lentos, uma certa desorientação espacial e um choro catártico que chegou sem avisar e não sabia de onde vinha. O corpo todo tremia como se estivesse descongelando. Não entendia o que havia acontecido.

- Não reagente para os quatro. Pode ir tomar os remédios e levar o resultado para a médica.

Estava limpa. Entrara naquela situação limpa.

Tomou dois comprimidos de azitromicina de 500mg cada um e seguiu o auxiliar de enfermagem para a injeção intramuscular de medicação preventiva para gonorréia. [nunca pensou que teria de pronunciar essa palavra ou ouví-la  fora das aulas de biologia].

O tempo na unidade de saúde não passava entre a consulta e a farmácia, entre a farmácia e os testes, entre os testes e a injeção: Espera.  Espera é esperança, mas é também tempo para pensar em tudo, sentir voltar o frio congelante algumas vezes e tentar entender o que acontecera. Não havia memória dos fatos. A última lembrança que ela tinha era a de fechar a bolsa e levantar-se para sair. Havia ficado umas horas a mais na sala após a aula, estava preparando as provas do semestre.

Resultados entregues, não havia terminado ainda. A médica fala sobre PEP. Explica os 28 dias tomando o coquetel anti-HIV, ao mesmo tempo que receita mais 8 comprimidos de uma outra droga fortíssima, a ser tomado em dose única, ainda naquela noite e as duas ampolas de bezetacil (12.000.000 ui) ainda naquela tarde. Deixou claro que a prevenção nesses casos é fundamental e iniciar  a profilaxia em menos de 72 horas do ocorrido, eleva as chances de evitar a contaminação por HIV. Assim soube que o PEP está disponível não apenas para vítimas de violência sexual, como também para pessoas que foram expostas ao risco de contaminação por serem profissionais de saúde ou mesmo por terem tido relações desprotegidas com parceiros suspeitos de praticar sexo inseguro. O único sentimento realmente bom naquele momento era o de viver num país que ainda tinha um sistema de saúde que acolhe preventiva e gratuitamente, em regime universal.  O SUS é uma supresa boa para ela que vivia um pesadelo que nunca acabava.

Saiu do posto de saúde com a dor da bezetacil no corpo e o desalento na alma, mas estava munida de toda a medicação que precisava, fornecida pelo SUS para os próximos 28 dias.

L.F.S, 34 anos, ainda não tinha realmente idéia de tudo que ainda viria.





quinta-feira, 23 de junho de 2016

Hoje vou de... Wislawa Szymborska



in www.magnusmundi.com
Bato à porta da
– Sou eu, deixa-me entrar.
Quero penetrar no teu interior,
olhar ao redor,
prender-te como a respiração.
pedra.
– Sai – diz a pedra.
Sou hermeticamente fechada.
Mesmo quebradas em pedaços
vamos ficar hermeticamente fechadas.
Mesmo trituradas em grãos
não vamos deixar ninguém entrar.

Bato à porta da pedra.
– Sou eu, deixa-me entrar.
Venho por curiosidade pura.
A vida é a única ocasião para ela.
Pretendo passear pelo teu palácio,
e depois visitar a folha e a gota dӇgua.
Não tenho muito tempo para tanto.
Minha mortalidade deveria te comover.
– Sou de pedra – diz a pedra –
e sou obrigada a manter a seriedade.
Sai daqui.
Não tenho os músculos do riso.
Bato à porta da pedra.
– Sou eu, deixa-me entrar.
Ouvi dizer que em ti há grandes salas vazias,
nunca vistas, inutilmente lindas,
surdas, sem eco de passos de quem quer que seja.
Reconhece, tu mesma não sabes muito sobre isto.
– Salas grandes e vazias – diz a pedra –
mas nelas lugar não há.
Lindas, talvez, mas além do gosto
de teus pobres sentidos.
Podes me conhecer, mas me provar nunca.
Com toda a minha superfície me volto para ti,
mas com todo o meu interior te dou as costas.
Bato à porta da pedra.
– Sou eu, deixa-me entrar.
Não busco em ti um refúgio para a eternidade.
Não sou infeliz.
Não estou desabrigada.
Meu mundo é digno de retorno.
Vou entrar e sair com as mãos vazias.
E como prova de que realmente estive pre sente,
não vou mostrar nada além de palavras
às quais ninguém dará fé.
– Não vais entrar – diz a pedra –
Falta a ti o sentido da participação.
Nenhum sentido substitui o sentido da participação.
Mesmo a visão elevada até à clarividência
não serve para nada sem o sentido da participação.
Não vais entrar, tens apenas uma noção deste sentido,
apenas o seu germe, sua imagem.
Bato à porta da pedra.
– Sou eu, deixa-me entrar.
Não posso esperar dois mil séculos
para entrar debaixo do teu teto.
Se não crês em mim – diz a pedra –
Dirige-te à folha, ela te dirá o mesmo que eu,
e à gota d”água, que te dirá o mesmo que a folha.
Por fim pergunta aos fios de teu próprio cabelo.
Um riso se alarga em mim, um riso, um riso enorme,
que eu não sei rir.
Bato à porta da pedra.
– Sou eu, deixa-me entrar.
– Não tenho porta – diz a pedra.


terça-feira, 15 de março de 2016

Carta ao Despertar

Prezado M.

Ver-te, riso frouxo, é surpreender-me. Conhecia teu riso contido, protocolar, educado. Jamais o havia visto assim, liberto da [auto]imagem sisuda, entregue ao prazer e à risada leve. Ainda lembro da primeira vez que ouvi o som da tua voz. Foi antes, bem antes de ver teu rosto. O timbre me chamou à cena, apurei os ouvidos para ver de perto de que se tratava. Era viva inteligência, pensei à época. Não pude deixar de encontrar uma cadeira plástica e desconfortável, onde pudesse encostar. Queria beber aquelas palavras, ditas em voz ritmada. Queria saber-te, mesmo que burocraticamente. 

Vi-te ainda muitas vezes, sempre do outro lado da mesa, a maior parte em obsequioso silêncio, em profunda observação do entorno. Nunca te vi descontrolado e hoje, ao encontrar-te entre andares, percebo o controle a transbordar em camisas alvas e meticulosamente engomadas - nada fora do lugar. Mas no sonho, o riso era livre e havia mesmo um brilho novo no olhar. 

Confidenciei a Antônia o sonho. 'Adoro ver meu irmão rindo', ela disse. Imaginei que haverá momentos em que te desarmas e ri, como o inconsciente me revelou. Não sei porque viestes me visitar em sonho, há mais de ano e dia estou tão perto e mantemo-nos tão distantes. Sempre o fomos, bem sei. Entendo menos a medida que o desvelo, era um desses sonhos tão vívidos em que as cores e o cenário são claros e as sensações permanecem [e permanecem] mesmo depois de despertar. 

O Resgate dos Sonhos _ Chagall
É desses sonhos que geram uma necessidade incontrolável de registrar em letras. Sim, estou escrevendo esse sonho durante o expediente na repartição [adoro chamar de repartição, é tão vintage!] e imagino que tua habitual rigidez haveria de julgar inadmissível tal conduta. Que seja! Não sou mulher de condutas admissíveis, nunca fui realmente! E a esta altura da vida, nada há de domar meu ímpeto diante de tua súbita [e encantadora] aparição em meus sonhos. 

Creia, essa carta é só para dizer o que adormeceu nesses quase dez anos e que o sonho inesperadamente despertou: O curioso interesse por uma voz e várias ideias.

Volto ao trabalho, esvaziada das memórias inconscientes aguçadas pelo sonho, mas ainda repleta de sensações.

Cordialmente,

M.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Fragmentos [1]

hoje acordei
algo havia quebrado
o estilhaçar tomou todos os cantos
da casa
[não foi prato, nem vidraça]
Tal qual Travolta
deslizo o olhar da esquerda para a direita
vice versa e o contrário
Não sei precisar
o que quebrou [?]
mas sei!
algo partiu
[Fragmentos - Maria Cláudia Cabral - EM CONSTRUÇÃO]