domingo, 26 de setembro de 2010

Virada do Avesso




Senti não só o coração batendo oco, como os pulmões murchos, olhar espantado, mãos frias e a garganta subitamente inundada por uma avalanche que se dirigia aos olhos. Estes, virados para o avesso, cobriam-se lentamente fechando-se para a porta da rua.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Primavera

Sabedoria observar os ciclos da vida e aprender com eles. Somos também nós parte da vida no planeta e vivemos, ainda que não nos demos conta, de tais ciclos.

A vida passa por nós, enquanto passamos por ela numa dança infinita e harmoniosa. Cada estação um desafio. Cada temporada um aprendizado. Assim passam os dias, os meses, os anos. Seguimos adiante bailando ao som do tempo silencioso que passa.

No entanto, há pessoas alheias aos ciclos da vida, não percebem a beleza nem se dão conta do movimento. E insistem em acreditar que ainda estão no mesmo lugar. O mundo gira e lá estão elas tocando as mesmas músicas, repetindo os mesmos versos gastos. O tempo passa tão lento que o som de suas vidas se distorce com um vinil tocando na vitrola em baixa rotação.

Há ainda aqueles para os quais o tempo não passa, a vida não passa. Estacionam num fato, num ato, num caso suas vidas vazias e ali repetem e repetem as mesmas escolhas: um vinil arranhado e melancólico. Há os que seguem bradando os mesmos gritos de guerra, repetindo e repetindo as mesmas crenças, sentados no centro do disco.

O tempo é relativo para cada um. Escolhemos o tempo em que tocamos nosso vinil predileto. Para mim, a primavera chegou, trazendo novas flores nos velhos Ipês do Eixão. Trazendo infinitas possibilidades de realização. Meu tempo é o agora, minha rotação é aqui. Qual é o seu tempo?

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

O Ipê: resposta a Caio Marques

Foto: Clarita Rickli
Caio,

O Ipê e seus ciclos. Há tempo de florescimento. Tempo de beleza e fulgor. Há tempo de folhas caídas, flores derramadas. Há tempo de galhos magros estendidos para os céus. O Ipê e seus ciclos. Serão os relacionamentos verdadeiramente intensos como os Ipês? - pergunto-me. 

Tivemos todos os tempos. Passamos por cada temporada e agora, mais uma vez, galhos secos estendem-se para o céu, enquanto flores murchas adubam as raízes. Somos Ipês? Por quanto tempo nossas flores - idas e vindas - ainda nutrirão o Ipê?


Não sei, mas gosto da perspectiva de sermos Ipês. Assim, já nem sinto saudades, nem mágoa das flores que caíram sem que eu pudésse sequer tê-las registrado. Dá-nos um sentido de percurso, movimento ininterrupto e livre, dentro de uma ordem natural de coisas. É, gosto de sermos Ipês.

Sejamos Ipês (será que meu humano egoísmo suporta?) floridos ou nus. Sejamos hoje o que somos hoje. Felizes com flores e sem flores. 

Reflexivo afeto,

A. L.



quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Macacos no Sótão

Carpinejar afirmou hoje no twitter 'É frustrante para uma ciumenta namorar um homem comportado.' Foi quando um grupo de macacos sapateadores ocupou meu sótão.  

Formou-se um eco ensurdecedor naquele pedaço de mim e tive de parar para refletir. e sentir. Respirei fundo naquela frase, tentei que cada palavra entrasse pelas narinas junto com o ar e inundasse o sótão, arejasse as idéias. Ainda assim, havia ainda um incômodo. Meu cérebro concorda integralmente com Carpinejar, enquanto meu coração bate a ponta do pé contra o solo e a cabeça balança ao som do tsc, tsc, tsc.

O assunto me lembra Walkíria. O primeiro marido achava que ela não o amava o suficiente por que desde os tempos de namoro o incentivava a ter um tempo dele com os amigos - conversas de bar, jogo de futebol essas coisas - pelo menos uma vez por semana. Ela não era ciumenta e isso o fazia sentir-se menos amado. O coração sorria tranquilo aquelas horas bem vividas dele e dela, cada um experimentando seu próprio espaço. Walkíria* acreditava no amor e na liberdade.

Gostava de dizer que nunca foi traída por ele, embora saiba que até foi. Mas sempre preferiu a ignorância aos pesadelos e às disputas. Não sei se foram felizes, mas certamente, ela teve dez anos de noites inteiras de sono.

Depois que a relação acabou, Walkíria teve alguns parceiros até encontrar um novo companheiro. Dizia-me que com ele desceu ao inferno. O homem era compulsivo por sedução, enlaces, enfim por mulheres. Ela chegou a pesar 44 kg e toda sua tranquilidade voou pela janela sempre aberta às novas aventuras dele. Traições sucessivas a deixaram paranóica e ela não conseguia sair do lugar. Ele era compulsivo por mulheres, ela compulsiva por ele. Depois de três anos de conselhos de amigas e de repetir para si mesma 'ele não vai mudar, sou eu quem tem de mudar', deixou-o em silêncio.

Cinco anos de terapia e abstinência de afeto depois, viu-se diante do mar. Primeiro a ponta dos dedos, um pé, depois o outro. Sentiu cuidadosamente o terreno, deixou-se envolver pela água morna dos sentidos, por fim entregou-se às ondas sutis que a invadiram. Ele era mar calmo, com poucas ondas e nenhuma arrebentação. Confiou como nunca, confiou como antes.

Até o dia que a rede lhe trouxe notícias de uma vida dupla. Ligou aos prantos em  pleno dia dos namorados. Era o fim, dizia ela. Saímos para um chopp e os soluços foram substituídos pela prosa divertidas dos amigos. Terminou a noite começando uma nova trajetória. 

Uma semana depois já estava naqueles braços de novo, ouvindo promessas de amor eterno e acreditando na célebre frase dos incautos 'Eu vou mudar'. Nunca mais foi a mesma e ele, aparentemente comportado, continuou o mesmo. 

Será que ela se sente frustrada por ele estar comportado ou por sabê-lo o mesmo?

*Walkíria é nome fantasia em respeito a privacidade da amiga em questão.