sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Diário de 28 dias pós estupro - L.F.S., 34 anos - 25 dia

Os pesadelos chegaram para ficar. Ela sabia que estavam ali, mas não se lembrava de seu conteúdo. Mais uma vez acordou às 3 horas da manhã, desta vez banhada em suor frio. Costas, testa, peito molhados. Teria revivido  o trauma em sonho? Não tinha idéia, não conseguia voltar ao sono. Restava escrever, ainda era cedo para tomar os remédios. Introduzira por sugestão de uma amiga médica um medicamento em jejum que prometia proteger o estômago. Ela que não gostava de medicamentos aderira a este exausta da batalha que seu corpo vinha travando com a medicação e que colocava seu estômago e intestinos no centro do Universo.

Decidiu tirar uma licença do trabalho. Não havia alternativa para ela, sequer sabia como seria quando a licença acabasse. Ela não conseguia se imaginar novamente rodeada por aquelas paredes, atravessando aquele corredor. Era um misto de dor e vergonha que não a abandonava e, sentia, estaria com ela ainda por muito tempo. Mas estava viva - não sabe bem como - mas estava. De súbito percebeu-se desejando sumir, desaparecer da Terra. Para ser bem honesta o que queria era morrer. Nada mais fazia sentido  e só quem viveu essa experiência haverá de entender o que sentia. Faltava sentido.

Os filhos àquela altura, que nada sabiam sobre o ocorrido, não entendiam a mãe estendida na cama dia inteiro. Ela fora dinâmica sempre, agora era uma samambaia no canto da sala. Talvez a samambaia fosse mais vívida que ela. Estava apática a maior parte do dia. Corpo, mente e psique sofriam diante da violência experimentada. Que fazer para reparar isso? Perguntava-se e culpava-se pela desatenção com os filhos, pela ausência na escola, mas não podia pensar na escola. Não podia pensar na ideia de voltar lá.

O delegado a havia quase dissuadido de prestar queixa. As razões eram racionais. Era fato que mesmo com o exame de corpo delito era ela que a todo instante teria de provar que era a vítima. Ele mesmo insinuou mais de uma vez durante o depoimento que ela poderia ter ''provocado'' de alguma forma. Perguntou sobre o que vestia, sobre a proximidade com o autor da violação. A questionou tantas vezes e de várias maneiras sobre a autoria, ante a sua confusão mental diante da reconstituição de memórias e seu abalado senso de orientação. Por fim disse que no final poderia não dar em nada e ela teria manchado sua reputação no trabalho, na vizinhança, com as pessoas da comunidade escolar. Ela ouvia aquela voz longe de si e pensava ''eu fui a vítima'', ''fui agredida e violada'', ''eu vou pagar por isso?''

Já estava pagando. Pagou no IML, paga até hoje e ainda por mais 24 dias tomando esse bendito coquetel que a protegerá de um mal maior. Pagou no primeiro dia quando vomitou mais de 8 vezes e se esvaiu em diarréia, olhos fundos, corpo surrado pela violência dos espasmos gástricos. A medicação para proteger o estômago foi um alívio para os vômitos a partir do segundo dia. Agora só restava a diarréia que aos poucos ia cedendo ou pelo menos tornara-se menos violenta. O tempo das batalhas sangrentas no corpo ia passando, o inimigo ia sendo vencido - torcia! - pelo exército químico que ingeria. As tropas biancas, comandadas pelo Ritovanir, pelo Sulfato de Atazanavir e pelo Fumerato de tenofovir - desoproxila, pelo visto já dominavam o inimigo e aos poucos seu intestino ia voltando ao trabalho. Seja lá o que isso efetivamente signifique.

Adormeceu novamente exausta enquanto o sol se levantava, podia não acordar mais.



Nenhum comentário:

Postar um comentário

O que você acha?