quarta-feira, 28 de setembro de 2016

28 dias de L.F.S, 34, pós estupro - Antes do Primeiro Dia



Um estupro pode durar 29 dias - o dia do fato mais os 28 de prevenção ao HIV (PEP). Depois de passar pela delegacia de polícia, onde foi confrontada e achacada, após o IML onde numa mesa fria foi examinada com total indiferença, la estava ela recebendo cuidados profiláticos. Na unidade de saúde pública em que foi atendida recebeu o primeiro olhar verdadeiramente humano após o ocorrido. Nada de perguntas desnecessárias, nada de violação de direitos, apenas o suficiente para o encaminhamento. Toda a equipe de saúde envolvida estava pronta para um olhar de cuidado e respeito.

Mesmo com todo o cuidado, a violência continua. Não é a violência sexual do estupro, nem a violência moral e emocional dos aparelhos de segurança pública, mas uma micro violência  a cada passo para os cuidados que tem de tomar para tentar garantir ao menos preservar-se das possíveis consequencias. Não dá para falar em saúde quando a integridade do corpo e da alma já foi violada.

Antes dos procedimentos de prevenção foi necessário fazer os testes rápidos para Sífilis, Hepatite B, Hepatite C e o tão temido HIV.  A primeira notícia é ''que esta testagem não retrata as consequências da violência, mas o estado de saúde naquele momento. A testagem para HIV somente após dois meses do intercurso sexual.'' Uma ou duas gostas de sangue e a infindável espera pelas barrinha coloridas no visor dos testes.

Enquanto espera, gira em sua cabeça a ideia de que tudo aquilo que parecia ter acabado, pode estar apenas começando. Por um instante mergulha o olhar nas paredes brancas e volta ao teto manchado pela infiltração que a abduziu da dor naquela tarde na escola onde trabalhava. Foi encontrada desacordada, sem marcas aparentes de violência, exceto pelo fio de sangue que escorria por suas cochas, olhos fixos no teto da sala de aula. O corpo ainda gelado, reflexos lentos, uma certa desorientação espacial e um choro catártico que chegou sem avisar e não sabia de onde vinha. O corpo todo tremia como se estivesse descongelando. Não entendia o que havia acontecido.

- Não reagente para os quatro. Pode ir tomar os remédios e levar o resultado para a médica.

Estava limpa. Entrara naquela situação limpa.

Tomou dois comprimidos de azitromicina de 500mg cada um e seguiu o auxiliar de enfermagem para a injeção intramuscular de medicação preventiva para gonorréia. [nunca pensou que teria de pronunciar essa palavra ou ouví-la  fora das aulas de biologia].

O tempo na unidade de saúde não passava entre a consulta e a farmácia, entre a farmácia e os testes, entre os testes e a injeção: Espera.  Espera é esperança, mas é também tempo para pensar em tudo, sentir voltar o frio congelante algumas vezes e tentar entender o que acontecera. Não havia memória dos fatos. A última lembrança que ela tinha era a de fechar a bolsa e levantar-se para sair. Havia ficado umas horas a mais na sala após a aula, estava preparando as provas do semestre.

Resultados entregues, não havia terminado ainda. A médica fala sobre PEP. Explica os 28 dias tomando o coquetel anti-HIV, ao mesmo tempo que receita mais 8 comprimidos de uma outra droga fortíssima, a ser tomado em dose única, ainda naquela noite e as duas ampolas de bezetacil (12.000.000 ui) ainda naquela tarde. Deixou claro que a prevenção nesses casos é fundamental e iniciar  a profilaxia em menos de 72 horas do ocorrido, eleva as chances de evitar a contaminação por HIV. Assim soube que o PEP está disponível não apenas para vítimas de violência sexual, como também para pessoas que foram expostas ao risco de contaminação por serem profissionais de saúde ou mesmo por terem tido relações desprotegidas com parceiros suspeitos de praticar sexo inseguro. O único sentimento realmente bom naquele momento era o de viver num país que ainda tinha um sistema de saúde que acolhe preventiva e gratuitamente, em regime universal.  O SUS é uma supresa boa para ela que vivia um pesadelo que nunca acabava.

Saiu do posto de saúde com a dor da bezetacil no corpo e o desalento na alma, mas estava munida de toda a medicação que precisava, fornecida pelo SUS para os próximos 28 dias.

L.F.S, 34 anos, ainda não tinha realmente idéia de tudo que ainda viria.





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