sexta-feira, 30 de setembro de 2016

28 dias de L.F.S, 34 - pós estupro - Faltam 27 dias



Os sons do dia invadiram o quarto. Finalmente tivera uma noite inteira de sono desde o episódio. Lentamente abriu os olhos ofuscados pela luz do dia que entrava por uma fresta da janela. Por um instante buscou o gosto metálico na boca. Estava menos agressivo hoje. Suspirou fundo pensando que teria de tomar o coquetel preventivo novamente e novamente até o vigésimo oitavo dia. Mais um dia, não queria ter novamente um dia como o de ontem. Ou de anteontem ou do dia em que só lhe restou ficar inerte diante do ataque sofrido.

A pergunta martelava em sua cabeça

-''porque não conseguiu reagir?'
- '' porque não se debateu?''
- '' Porque o não repetido tantas vezes até sua voz sumir não foi suficiente?''

De nada adiantou a psicóloga do posto de saúde esclarecer que a reação de congelamento acomete muitas pessoas em situações de ataque inescapável. Quando o sistema nervoso autônomo, responsável pela resposta de luta e fuga é acionado, muitas vezes ele mesmo entende que lutar ou fugir não serão suficientes para evitar o ataque. Nesses momentos, resta como alternativa pela sobrevivência, congelar ou fingir-se de morto, como fazem os animais na natureza. Nunca ouvira falar sobre aquilo. Não entendia. O certo é que aconteceu com ela e ela não conseguiu reagir de forma efetiva para evitar o estupro.

- Mas conseguiu sobreviver - disse a psicóloga - E isso era o mais importante.

Ela não tinha certeza se queria ter sobrevivido. Quem sabe não seria mais fácil se tivesse sido morta de uma vez. Levantou-se lentamente e preparou-se para tomar mais uma dose. Comeu pouco. Apenas o suficiente para tornar o contato da medicação com o estômago menos agressiva. Em seguida, respirou fundo e um a um engoliu as drogas. Silenciosamente pediu que a peia fosse mais branda naquele dia. Não suportaria passar por tudo novamente e agradeceu estar podendo preservar ao menos a saúde.

Meia hora foi o suficiente para iniciar o ciclo da diarréia. Felizmente não havia, pelo menos até aquele momento, vômitos. O enjoo permanecia, ainda um pouco de tontura. Só a diarréia firme seguia. Foi assim durante todo o dia. Não reclamou. Ela ao menos podia tomar água de côco e reidratar-se de algum modo. A energia vital estava baixa. Só tinha vontade de dormir. O corpo estava invadido por um exército poderoso com milhares de soldados que caçavam implacáveis um vírus que não tinha certeza que estava lá. Não importava, tal qual o exército estadunidense no Iraque, não importava que não houvessem armas de destruição em massa no país, eles tinha de eliminar o inimigo e para isso destruiriam tudo o que encontrassem pela frente. No seu caso, toda a sua flora intestinal, suas vísceras, todas as bactérias felizes que viviam em seu corpo há anos. Era uma invasão e tanto.

A ela não importava se havia ou não armas de destruição em massa, só queria fazer o próximo teste - em dois meses - e receber um resultado ''NÃO REAGENTE``.

As horas se arrastavam. Tentou ler, não conseguiu. Tentou escrever não era possível. O raciocínio estava algo lento. E assim a temida hora do almoço chegara. Comeu pouco e leve, ainda ressoava a memória do dia anterior. As horas passaram e nada novo aconteceu. A diarréia seguia com ela. Mas nada de fortes enjoos. Sentia que estava melhor. Iria ficar cada dia melhor. Melhor e mais forte, havia sobrevivido.

Dormiu cedo, exausta como se tivesse corrido um maratona no inverno novaiorquino.


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