sexta-feira, 27 de agosto de 2010

O Fio - Carta a Caio Marques

Caio,

Todo o silêncio e a distância alimentados durante  os últimos meses ajudaram a ver o quão difícil seria retomarmos o que tínhamos. A viagem para o outro lado do oceano me mostrou  a força das raízes e das origens, os sabores do velho mundo de onde vim a tantos anos fez me viajar em cada acorde de um fado, que longe tocava pelas ruelas do lugar, lembrando-me Alfamas. No entanto, a volta nunca é um retorno, é na verdade um novo caminho. E não creio seja possível constituir um novo caminho contigo, por que agora falta entre nós componente essencial em qualquer relação: a confiança.

A confiança é um fio firme e delicado que uma vez rompido não é possível restaurar sem macular sua delicadeza. É sempre um arremedo, um remendo, um nozinho, uma colagem, um qualquer coisa que tenta, tenta e não consegue dar segurança. O fio entre nós foi rompido e é certo, por mais que tentássemos , jamais conseguiríamos fazê-lo puro e sutil como antes. 

Fostes a lembrança mais presente nos passeios que fiz nesses meses e fostes a ausência menos sentida. Estive em paz comigo até que fantasmas teimaram em aparecer numa noite clara e cálida. Foram eles que sussurraram entre dentes apodrecidos que a confiança não se poderia restabelecer. Despertei suada, com uma tristeza funda querendo assaltar minha alma. Não permiti! Não permitirei que me roubem a alma, que me tirem a paz. 

Somos o que escolhemos - eu e tu - sem meias palavras. Escrevemos nossa história com todas as letras. As palavras que compuseram essa canção foram minuciosamente selecionadas. Foi uma composição a quatro mãos. Escrevi alegria, confiança, paz, harmonia, amor, solidariedade, generosidade, companheirismo e entrega. E tu? Juntastes um punhado de letras bastardas, dessas que vagueiam de casa em casa, sem lar e escrevestes T-R-A-I-Ç-Ã-O. Com o passar do tempo descobri palavras ocultas, esgueirando-se pelas entrelinhas de ano e dia em meias verdades, numa vida dupla: M-E-N-T-I-R-A!?

Como podias esperar que com um punhadinho de versos doces e promessas fúteis pudésse apagar completamente as palavras vadias  que teimastes em colocar em nosso samba. Uma palavra  cantada não volta atrás. Novos versos não aplacam a banalização de uma letra. Apagar, talvez ajude, mas o papel para sempre estará manchado pela afoiteza de atravessar o samba com tão ordinária letra.

Sinto, sinto muitíssimo, mas o samba que quero sambar com minhas sandálias de prata é outro. É samba-canção, samba devotado, quase reservado é samba de avião. Por isso, meu caro Caio, deixa-me agora enquanto ainda nos resta algum sorriso para compartilhar e, até espero, algumas cartas para trocar.


Com afeto,

A.L.






Nenhum comentário:

Postar um comentário

O que você acha?