Nasci nômade. Perambulei pelo país, mudando de cidade durante anos. Cada partida, laços desfeitos. A cada chegada, novos amigos. Saberes e fazeres diferentes foram me constituindo. A dor da partida aos poucos era compensada pelas novidades da chegada. Novas cores, novos olhares, novas perspectivas.
Assim fui forjando quem sou. Pegando um pouquinho daqui outro dali. O calor de Belém, com seus aromas exóticos, seus sabores ímpares. O mistério da floresta, a imensidão do Rio. Algo do prazer sem culpa que herdamos dos povos indígenas, nossos antecessores nessa terra
brasilis.
A alegria e o sincretismo religioso de Salvador com as construções históricas, as cores vibrantes, a mistura exuberante. A força e a fé do povo das várias nações africanas que vieram povoar o Brasil. O poder das matriarcas do candomblé e a serena maladragem dos capoeiristas. Aos quatorze anos, a mais dramática das mudanças me levou de Salvador - onde chamava o diretor da escola de ''Toinho'' - para São Paulo, onde fui tida como ''petulante'' pela professora de português por me dirigir à coordenadora usando ''você''. Experiência traumática, retrato do choque de culturas, num país plural e diverso como o nosso.
Foi assim que São Paulo entrou nesse caldo. A despeito do trauma, segui adiante olhando o que havia de bom para aprender. Não absorvi a deselegância discreta cantada por Caetano, ao contrário, sorvi uma elegância vanguardista e ao mesmo tempo algo retrô.
Apreendi uma mania estranha de buscar sempre a eficiência, o resultado e a tal produtividade, mesmo sendo adepta da economia solidária, dos direitos humanos e da busca incessante pela igualdade de oportunidades entre homens e mulheres. O bicho da produtividade capitalista me mordeu e me contaminou, deixando um rastro de estresse e aprendizado sobre a importância dos amigos, da família e de respirar para transitar bem nesse mundo.
Mas antes, muito antes disso acontecer, dei um pulinho no Rio de Janeiro. Foi um pulo tão rápido - vivi lá por onze meses - num intervalo entre São Paulo e Brasília. Não pude deixar de notar, extasiada, a energia que toma conta de qualquer de nós - até dos mais desatentos - ao flutuar sobre a baía de Guanabara, em busca do aeroporto Santos Dumond. Salve Tom Jobim e o Samba do Avião. E aprendi a gostar de samba. Aqui, muita atenção! Favor não confundir, estou falando de samba de raiz. Aquele que nasceu e se criou nos morros, nas comunidades cariocas. No Rio aprendi a respeitar meu corpo e seus limites, e, por incrível que pareça, a valorizar quem sou exatamente como sou. Nem mais gorda, nem mais magra, nem mais alta, nem mais baixa.
Feita a paradinha estratégica na meca dos corpos sarados, fui ao encontro daquela que seria minha alma gêmea. Já sem identidade ou selo de origem controlada, sentia-me uma colcha de retalhos, um híbrido cultural sem raiz. Ao conhecer as linhas retas de Brasília, suas largas avenidas, caí de amores pela cidade. Ela, que como eu, era feita de tantas cores, tantos cheiros, tantas influências. Brasília que era, como eu, fruto da mistura de vários povos e que tem - ainda hoje - um fluxo de moradores periódico e regular, mostrou-me que ser várias também é ser una.
Fui assim sendo forjada na diversidade cultural brasileira. Aprendi a olhar sempre para o que há de melhor em cada lugar onde passo. Minha identidade é, como minha digital,única. Sou todos os lugares onde fui, todos os amigos que fiz, todas as histórias vividas. Sou todos os sabores, todos os cheiros, e ao mesmo tempo sou uma. Abro os braços, a cabeça e o coração para o novo, todos os dias. O que não sei, eu crio. Minha verdade? É que a vida não nos dá garantias e que permanente, só a mudança.
TODA MULHER TEM DIREITO A MUDANÇAS.