Prezado M.
Ver-te, riso frouxo, é surpreender-me.
Conhecia teu riso contido, protocolar, educado. Jamais o havia visto assim,
liberto da [auto]imagem sisuda, entregue ao prazer e à risada leve. Ainda lembro
da primeira vez que ouvi o som da tua voz. Foi antes, bem antes de ver teu
rosto. O timbre me chamou à cena, apurei os ouvidos para ver de perto de que se
tratava. Era viva inteligência, pensei à época. Não pude deixar de encontrar
uma cadeira plástica e desconfortável, onde pudesse encostar. Queria beber
aquelas palavras, ditas em voz ritmada. Queria saber-te, mesmo que
burocraticamente.
Vi-te ainda muitas vezes, sempre do outro
lado da mesa, a maior parte em obsequioso silêncio, em profunda observação do
entorno. Nunca te vi descontrolado e hoje, ao encontrar-te entre andares,
percebo o controle a transbordar em camisas alvas e meticulosamente engomadas -
nada fora do lugar. Mas no sonho, o riso era livre e havia mesmo um brilho novo
no olhar.
Confidenciei a Antônia o sonho. 'Adoro ver
meu irmão rindo', ela disse. Imaginei que haverá momentos em que te desarmas e
ri, como o inconsciente me revelou. Não sei porque viestes me visitar em sonho,
há mais de ano e dia estou tão perto e mantemo-nos tão distantes. Sempre o
fomos, bem sei. Entendo menos a medida que o desvelo, era um desses sonhos tão
vívidos em que as cores e o cenário são claros e as sensações permanecem [e
permanecem] mesmo depois de despertar.
O Resgate dos Sonhos _ Chagall |
É desses sonhos que geram uma necessidade
incontrolável de registrar em letras. Sim, estou escrevendo esse sonho durante
o expediente na repartição [adoro chamar de repartição, é tão vintage!] e imagino que tua habitual
rigidez haveria de julgar inadmissível tal conduta. Que seja! Não sou mulher de
condutas admissíveis, nunca fui realmente! E a esta altura da vida, nada há de domar
meu ímpeto diante de tua súbita [e encantadora] aparição em meus sonhos.
Creia, essa carta é só para dizer o que
adormeceu nesses quase dez anos e que o sonho inesperadamente despertou: O
curioso interesse por uma voz e várias ideias.
Volto ao trabalho, esvaziada das memórias inconscientes aguçadas pelo sonho, mas ainda repleta de sensações.
Cordialmente,
M.