segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Hoje vou de... Álvaro de Campos

meu heterônimo predileto de Pessoa. talvez, apenas talvez, minha parte no imenso latifúndio que é a obra do poeta.


A  PASSAGEM DAS HORAS



Sentir tudo de todas as maneiras,
Ter todas as opiniões,
Ser sincero contradizendo-se a cada minuto,
Desagradar a si-próprio pela plena liberalidade de espírito,
.

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Eu, tudo isto, e além disto o resto do mundo...
Tanta coisa, as portas que se abrem, e a razão porque elas se abrem,
E as coisas que já fizeram as mãos que abrem as portas...
Eu, a infelicidade-nata de todas as expressões,
A impossibilidade de exprimir todos os sentimentos,
Sem que haja uma lápide no cemitério para o irmão de tudo isto,
E o que parece não querer dizer nada sempre quer dizer qualquer coisa...
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Mas o facto é que sempre é outono no outono,
E o inverno vem depois fatalmente,
E há só um caminho para a vida, que é a vida...
Esse velho insignificante, mas que ainda conheceu os românticos
Esse opúsculo político do tempo das revoluções constitucionais,
E a dor que tudo isso deixa, sem que se saiba a razão
Nem haja para chorar tudo mais razão que senti-lo.
Todos os amantes beijaram-se na minh'alma,
Todos os vadios dormiram um momento em cima de mim
Todos os desprezados encostaram-se um momento ao meu ombro,
Atravessaram a rua, ao meu braço todos os velhos e os doentes,
E houve um segredo que me disseram todos os assassinos.
(Aquela cujo sorriso sugere a paz que eu não tenho,
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Fui para a cama com todos os sentimentos,
Fui souteneur de todas as emoções,
Pagaram-me bebidas todos os acasos das sensações,
Troquei olhares com todos os motivos de agir,
Estive mão em mão com todos os impulsos para partir,
Febre imensa das horas!
Angústia da forja das emoções!
Raiva, espuma, a imensidão que não cabe no meu lenço,
A cadela a uivar de noite,
O tanque da quinta a passear à roda da minha insónia
O bosque como foi à tarde, quando lá passeamos, a rosa,
A madeixa indiferente, o musgo, os pinheiros,
Toda a raiva de não conter isto tudo, de não deter isto tudo,
.

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A situação de passageiro,
A conveniência em embarcar lá para ter lugar,
E falta sempre uma coisa, um copo, uma brisa, uma frase,
E a vida dói quanto mais se goza e quanto mais se inventa.
Poder rir, rir, rir despejadamente,
Rir como um copo entornado,
Absolutamente doido só por sentir,
Absolutamente roto por me roçar contra as coisas,
Ferido na boca por morder coisas,
Com as unhas em sangue por me agarrar a coisas,
E depois dêem-me a cela que quiserem que eu me lembrarei da vida.

[1916] 


                                                 b

Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.

[posterior a 1917]


□ espaço deixado em branco pelo autor
[.] palavra ilegível


In Poesia , Assírio & Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002
Álvaro de Campos
A




























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