Caio (ainda te chamarei assim?),
Emudeci, enquanto meu corpo inteiro tremia com o sangue gelado correndo lento nas veias, ao ler sua traição. Ainda agora sinto-me lenta e a língua morta, repousa dentro da boca seca. Quem é esse homem com quem me correspondi todo esse tempo, afinal? Quem é esse com quem compartilhei os meus melhores sentimentos? Quem sou eu que me permiti viver tal mentira?
Você diz que por vezes me sentiu testá-lo. Eu não o testei, por que mesmo depois da catatonia que me causou a confissão anterior, eu queria acreditar em você. Por isso nada comentei. Sua tentativa de me livrar do homem que não me merece, foi frustrada, e você sabe. Por que eu queria acreditar que fora amada. Meus olhos brilhavam só em pensar nele. Eu queria inventar um ego frágil para justificar suas (dele?) escapadas sorrateiras. Tentava dizer a mim mesma 'Caio se sente só, não dá conta de estar só, por isso seduz'. Caio precisa ser amado, admirado, para aninhar a criança ferida que mora em seu peito, e preencher seu vazio'.
Justificava, enquanto a dor dilacerava meu peito. Tentava ser o lado forte da relação, segurar-lhe a mão, mesmo à distância. Depois daquela traição - a outra - quando despido diante de mim Caio afirmou o reconhecimento de sua fragilidade e a decisão de procurar ajuda, meu coração - já espancado - se encheu de esperança. Por isso, não comentei a confissão que fizestes em nome dele. Àquela altura já não me importava, ele admitira que precisava de ajuda. Ele me pedira para segurar sua mão e caminhar a seu lado - mesmo à distância - para modificar aquelas condutas que vinha repetindo e que causavam tanta dor e desacerto na vida dele. E eu acreditei, e me dispus, e me despi da dor para estar com ele.
Valeu a tentativa, Caio (ou seja lá quem você for). Você, que tudo acompanhou, percebeu mais que eu o engano em que me envolvera. O amor cegava minhas escolhas. A entrega a Caio me afastou de mim inexoravelmente, fui diminuindo e diminuindo até tornar-me esse trapinho, que ora estou. Passará, Caio? Sim, passará, ainda que tenha vaga lembrança de mim, sei que encolhida num cantinho do banheiro, atrás da porta, está - cansada de apanhar - uma menina, uma mulher que pode ser - e foi - uma companheira como poucas.
Você diz que não me traiu de fato, ao tempo em que afirma a traição. Você mentiu, enganou, foi outro. Sinto-me traída, embora você (?) não sinta que traiu. Quando diz em sua derradeira carta que não revelou por que não era o momento de eu saber a verdade, sinto raiva. Não há momento certo para a honestidade numa relação, qualquer que seja, Caio(?).
Reconheço seu esforço amigo em desmitificar aquele Caio que me fazia brilhar os olhos. Torná-lo mais real que o rei, mas ainda assim não me afastou da fantasia que criei para ele: o homem perfeito para mim. Agradeço.
Entre eu e você nunca houve de fato o tal pacto mencionado em sua mensagem. Afinal, quem é você nessa história, se não um homem que tomou o lugar dele nas cartas para me fazer ouvida. Não posso me queixar de não ter sido ouvida, lida, correspondida por você. Então, me pergunto: 'Quem é o verdadeiro Caio Marques? Ele ou você?
Ele não é Caio Marques, abandonou a identidade que criamos - eu e ele - para ser quem é. Um homem grande com menino ferido dentro do peito, que não quer ver o guri por medo da dor. E quanto mais esconde o menino, mais a ferida infecciona, espalhando purulência e dor. A dor que ora trago comigo.
Mas se quer saber, te prefiro Caio Marques, embora chamar esse nome me remeta a tristeza, mais que alegria por ora. Foi você que me fez companhia, afinal, todos esses anos em que me relacionei com ele - me relacionei com ele? - me leu e segurou minha mão, mesmo à distância. Seja Caio Marques, então, se é seu desejo sê-lo, mas me perdoe um pouco a cada dia, por expurgar a dor que ainda sinto pela perda de todos os castelos de areia construídos com aquele que chamei Caio Marques.
Não te riscarei. Sigamos traçando nossos mapas por cartas. Sigamos, sigamos, a vida segue.
Sua sempre,
Anita Lopes