quarta-feira, 22 de setembro de 2010

O Ipê: resposta a Caio Marques

Foto: Clarita Rickli
Caio,

O Ipê e seus ciclos. Há tempo de florescimento. Tempo de beleza e fulgor. Há tempo de folhas caídas, flores derramadas. Há tempo de galhos magros estendidos para os céus. O Ipê e seus ciclos. Serão os relacionamentos verdadeiramente intensos como os Ipês? - pergunto-me. 

Tivemos todos os tempos. Passamos por cada temporada e agora, mais uma vez, galhos secos estendem-se para o céu, enquanto flores murchas adubam as raízes. Somos Ipês? Por quanto tempo nossas flores - idas e vindas - ainda nutrirão o Ipê?


Não sei, mas gosto da perspectiva de sermos Ipês. Assim, já nem sinto saudades, nem mágoa das flores que caíram sem que eu pudésse sequer tê-las registrado. Dá-nos um sentido de percurso, movimento ininterrupto e livre, dentro de uma ordem natural de coisas. É, gosto de sermos Ipês.

Sejamos Ipês (será que meu humano egoísmo suporta?) floridos ou nus. Sejamos hoje o que somos hoje. Felizes com flores e sem flores. 

Reflexivo afeto,

A. L.



quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Macacos no Sótão

Carpinejar afirmou hoje no twitter 'É frustrante para uma ciumenta namorar um homem comportado.' Foi quando um grupo de macacos sapateadores ocupou meu sótão.  

Formou-se um eco ensurdecedor naquele pedaço de mim e tive de parar para refletir. e sentir. Respirei fundo naquela frase, tentei que cada palavra entrasse pelas narinas junto com o ar e inundasse o sótão, arejasse as idéias. Ainda assim, havia ainda um incômodo. Meu cérebro concorda integralmente com Carpinejar, enquanto meu coração bate a ponta do pé contra o solo e a cabeça balança ao som do tsc, tsc, tsc.

O assunto me lembra Walkíria. O primeiro marido achava que ela não o amava o suficiente por que desde os tempos de namoro o incentivava a ter um tempo dele com os amigos - conversas de bar, jogo de futebol essas coisas - pelo menos uma vez por semana. Ela não era ciumenta e isso o fazia sentir-se menos amado. O coração sorria tranquilo aquelas horas bem vividas dele e dela, cada um experimentando seu próprio espaço. Walkíria* acreditava no amor e na liberdade.

Gostava de dizer que nunca foi traída por ele, embora saiba que até foi. Mas sempre preferiu a ignorância aos pesadelos e às disputas. Não sei se foram felizes, mas certamente, ela teve dez anos de noites inteiras de sono.

Depois que a relação acabou, Walkíria teve alguns parceiros até encontrar um novo companheiro. Dizia-me que com ele desceu ao inferno. O homem era compulsivo por sedução, enlaces, enfim por mulheres. Ela chegou a pesar 44 kg e toda sua tranquilidade voou pela janela sempre aberta às novas aventuras dele. Traições sucessivas a deixaram paranóica e ela não conseguia sair do lugar. Ele era compulsivo por mulheres, ela compulsiva por ele. Depois de três anos de conselhos de amigas e de repetir para si mesma 'ele não vai mudar, sou eu quem tem de mudar', deixou-o em silêncio.

Cinco anos de terapia e abstinência de afeto depois, viu-se diante do mar. Primeiro a ponta dos dedos, um pé, depois o outro. Sentiu cuidadosamente o terreno, deixou-se envolver pela água morna dos sentidos, por fim entregou-se às ondas sutis que a invadiram. Ele era mar calmo, com poucas ondas e nenhuma arrebentação. Confiou como nunca, confiou como antes.

Até o dia que a rede lhe trouxe notícias de uma vida dupla. Ligou aos prantos em  pleno dia dos namorados. Era o fim, dizia ela. Saímos para um chopp e os soluços foram substituídos pela prosa divertidas dos amigos. Terminou a noite começando uma nova trajetória. 

Uma semana depois já estava naqueles braços de novo, ouvindo promessas de amor eterno e acreditando na célebre frase dos incautos 'Eu vou mudar'. Nunca mais foi a mesma e ele, aparentemente comportado, continuou o mesmo. 

Será que ela se sente frustrada por ele estar comportado ou por sabê-lo o mesmo?

*Walkíria é nome fantasia em respeito a privacidade da amiga em questão.



sexta-feira, 27 de agosto de 2010

O Fio - Carta a Caio Marques

Caio,

Todo o silêncio e a distância alimentados durante  os últimos meses ajudaram a ver o quão difícil seria retomarmos o que tínhamos. A viagem para o outro lado do oceano me mostrou  a força das raízes e das origens, os sabores do velho mundo de onde vim a tantos anos fez me viajar em cada acorde de um fado, que longe tocava pelas ruelas do lugar, lembrando-me Alfamas. No entanto, a volta nunca é um retorno, é na verdade um novo caminho. E não creio seja possível constituir um novo caminho contigo, por que agora falta entre nós componente essencial em qualquer relação: a confiança.

A confiança é um fio firme e delicado que uma vez rompido não é possível restaurar sem macular sua delicadeza. É sempre um arremedo, um remendo, um nozinho, uma colagem, um qualquer coisa que tenta, tenta e não consegue dar segurança. O fio entre nós foi rompido e é certo, por mais que tentássemos , jamais conseguiríamos fazê-lo puro e sutil como antes. 

Fostes a lembrança mais presente nos passeios que fiz nesses meses e fostes a ausência menos sentida. Estive em paz comigo até que fantasmas teimaram em aparecer numa noite clara e cálida. Foram eles que sussurraram entre dentes apodrecidos que a confiança não se poderia restabelecer. Despertei suada, com uma tristeza funda querendo assaltar minha alma. Não permiti! Não permitirei que me roubem a alma, que me tirem a paz. 

Somos o que escolhemos - eu e tu - sem meias palavras. Escrevemos nossa história com todas as letras. As palavras que compuseram essa canção foram minuciosamente selecionadas. Foi uma composição a quatro mãos. Escrevi alegria, confiança, paz, harmonia, amor, solidariedade, generosidade, companheirismo e entrega. E tu? Juntastes um punhado de letras bastardas, dessas que vagueiam de casa em casa, sem lar e escrevestes T-R-A-I-Ç-Ã-O. Com o passar do tempo descobri palavras ocultas, esgueirando-se pelas entrelinhas de ano e dia em meias verdades, numa vida dupla: M-E-N-T-I-R-A!?

Como podias esperar que com um punhadinho de versos doces e promessas fúteis pudésse apagar completamente as palavras vadias  que teimastes em colocar em nosso samba. Uma palavra  cantada não volta atrás. Novos versos não aplacam a banalização de uma letra. Apagar, talvez ajude, mas o papel para sempre estará manchado pela afoiteza de atravessar o samba com tão ordinária letra.

Sinto, sinto muitíssimo, mas o samba que quero sambar com minhas sandálias de prata é outro. É samba-canção, samba devotado, quase reservado é samba de avião. Por isso, meu caro Caio, deixa-me agora enquanto ainda nos resta algum sorriso para compartilhar e, até espero, algumas cartas para trocar.


Com afeto,

A.L.






quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Chegando a Lisboa

Uai, foi assim: Desembarquei sonolenta, meio cambaleando, corpo ainda se adaptando ao fuso. Caminhei por um longo corredor, com uma luz que reforçava sua ausência de referências. Diante das paredes nuas e das intermináveis esteiras rolantes, dei-me conta de que havia grandes janelas de vidro, que mostravam sem pudor o sol que nascia. 

Foi nesse instante que respirei fundamente aquela sensação já mencionada de abundância e plenitude. Naquele instante enchi-me de amor e exalei todo o ar dos pulmões, grata pela vida. Sorte minha olhar a vida com olhos de gratidão, por que a fila que se formara para a entrada no país era de fazer chorar. Havia três caminhos, a saber: equipamentos para os portadores de passaporte da comunidade européia novos, com informações eletrônicas - uma ou duas pessoas - corredor para comunidade européia, estados unidos e confederação helvética - havia 5 ou 6 pessoas - e, claro, outras nacionalidades ou cidadãos da CPLP (comunidade dos países de língua portuguesa). Todos os demais passageiros estavam nessa fila. Resumo da ópera: duas horas de espera. Gracias por la vida.

Ainda no aeroporto, decidi comprar um LisboaCard (35Euros), que dá direito a andar de ônibus, trens urbanos e metro gratuitamente por três dias, entrar em zilhões de museus e atrações gratuitamente, além de descontos para todo o resto. Tomei um táxi, minha bagagem não me permitia ir de ônibus, em direção ao hostel Alfama Pátio, dêem uma conferida e vejam quanta sorte tenho. 

O hostel é lindo e o atendimento extremamente simpático. Logo que cheguei fui recebida por uma jovem louríssima, com olhos muito azuis que num português enroladíssimo me dava às boas vindas. Era Martina, uma polaquinha muito gente boa, que se recusava a falar inglês, por que queria aprender o português. Ela me mostrou tudo, levou-me ao quarto que divido com mais 5 garotas (hoje duas espanholas, uma russa, uma alemã e uma australiana). Quarto e banheiro são pequenos, as camas são boliches, como é tradição nos albergues e tenho direito a um cofre - que o hotel 4 estrelas de Corunha não dispunha - e um gavetão com chaves. 

Fico bem ao lado do alpendre que tem maravilhosa vista para o Tejo. O clima no albergue é impressionante. Sinto-me em casa o tempo todo. A cozinha está aberta para prepararmos refeições e  a geladeira disponível para colocarmos coisas, etc.  É muito divertido estar num hostel. 

Além disso estou numa localização que não tem explicação. Fico a alguns metros do Castelo de São Jorge, Largo das Portas do Sol, Feira da Ladra, Escola de Gil Vicente. Enfim, estou no coração de tudo. Quando saí no primeiro dia para buscar um lugar onde almoçar, fui dando-me conta de que estava próxima a tudo. Nada aqui é mais longe que 3km. E, claro que no final do segundo dia, eu já tinha chegado à conclusão de que havia desperdiçado meus 35 Euros.


Bem, funciona assim, se você, como eu, não é uma das maiores ratos de monumento e acredita, como eu, que o prazer da viagem é conhecer a cidade de seus cidadãos, trocar experiência com nativos e comer, andar e tudo mais como eles, então estamos de acordo: não vale a pena comprar o LisboaCard. Eu detesto filas, e o que mais se encontra nos sítios históricos justamente são as intermináveis filas de turistas com suas câmeras fotográficas.  

Sim, tirei muitas fotos até agora, precisarei de horas para organizar e selecionar todas, mas certamente não estará entre elas aquelas que podemos comprar nas infindáveis lojinhas para turistas à venda por ,50CentEuro.


Nesse primeiro dia, tal qual o raciocínio sobre monumentos, não queria me ver refém de restaurantes para turistas, em geral mais caro e com comidas típicas não tão confiáveis. Pus-me a andar e dei de cara com a Tasca do Manel. Lugar simples, cozinha boa. Vou dever a foto do maravilhoso polvo grelhado com camarão que comi nesse lugar simpático, que ademais tem um proprietário que só vendo, exemplo de homem português bonito de dar gosto. Como não peguei autorização, não será possível publicar a foto do gajo, mas estou levando para compartilhar com as amigas, junto com uma cerveja gelada qualquer dia desses. Paguei um preço justo, por uma comidinha bem legal. 


Aliás, a dica de não cair na tentação de ficar calculando em reais tudo o que se faz é uma das dez dicas mais valiosas para o viajante.Mais passeios, o castelo por fora, reconhecimento de área, exercício com mapas ver os casarios antigos, que ora lembram o Pelourinho, ora lembram a Lapa. Observar os raros portugas que transitam por essa área tão turística, foi o divertimento do dia, sob um sol escaldante de 35º. Calor a pino em Lisboa.


A noite a programação resumiu-se, mas não reduziu-se a comer em casa de Tereza, uma bela portuguesa que apenas conhecia pela rede, e que faz parte de uma comunidade da qual eu igualmente agora estou ligada o CouchSurfing* . Como Tereza não podia me receber, porque já estava com casa cheia, convidou-me para jantar com ela e seus hospedes. Foi um momento incrível. Havia Eric(EUA), Bern/Isabela (FR), um outro rapaz da França, Ana (AUSTRIA), César e Teresa de Portugal e Jeny (Áustria). Foi divertido ouvir e falar tantas línguas e, sobretudo, poder cometer erros e ainda assim ser compreendida. 


A noite acabou por volta das 3h da manhã e eu que mal dormia desde que saí do Brasil por não ter ainda me adaptado ao fuso, segui para o Hostel torcendo para conseguir pregar as pestanas. No final, nem foi tão difícil assim, embora o calor enchesse o quarto sem trégua.

Dica do dia: Não compre LisboaCard e curta a cidade mais de perto. Conheça Lisboa!







Diário de Santiago de Compostela

Desnecessário dizer que estando na Galícia tinha de ir a Santiago de Compostela, sua capital. A cidade, mundialmente conhecida em razão das peregrinações, é um primor. Ruas estreitas, prédios antiquíssimos,  janelas estupendas.

É, claro, um destino de turismo religioso, que mostra a força da fé e da igreja católica na mobilização de seus fiéis. Nesse ponto, assusta perceber um comportamento algo alienado e o bom e velho comércio dos objetos santos. 

Eu mesma, passando por Santiago, não poderia deixar de fazer mãe, avó e ex-sogra felizes, por isso tratei de adquirir uns rosários para presentear. Senti-me pouco confortável, mas, como cada ser sabe sua jornada, em respeito a la madre, la abuela y la abuela de los niños, investi alguns euros para um lote no céu.

Além do comércio da fé, desanima o tamanho das filas para a visita (paga) à catedral. Entendam, nem na Notre Dame eu entrei, em razão da fila, não seria em Compostela que o faria. Não sou o tipo de viajante que faz qualquer coisa para carimbar a "cartela dos monumentos visitados", ao contrário, prefiro percorrer as ruas, preferencialmente sair do circuito turístico e tentar, na medida do possível, interagir com os locais, suas histórias e os sabores tradicionais da região. 

Aliás, posso afirmar que tenho tido muita sorte, e por isso sou imensamente grata, porque venho encontrando pessoas incríveis nos lugares por onde tenho passado, dispostas a contar-me a história que está por detrás dos discursos dos guias. 

Em Santiago não foi diferente. Depois de de um tour rápido pelas várias praças e igrejas. Depois de fotografar todos os monumentos e suas filas monumentais, encontramos nossas anfitriãs em Santiago: Ana, Bea e Pilar, da e-burbulla. Aí começou a parte mais interessante da viagem. Ouvimos comentários ótimos sobre a cidade, rimos, experimentamos um autêntico Albariño (vinho típico da Galícia), que lamento não ter comprado para levar ao Brasil. 

Albariño é branco, seco e refrescante. Um vinho que alegra e que traduz um verão como poucos. As meninas de e-burbulla nos passaram uma bela lista de albariños de responsa, embora hoje saiba que não será muito fácil encontrá-los no Brasil. 

Mas o Albariño foi apenas o aperitivo para o que viria depois, logo mudamos de paragem e fomos a um pequeno restaurante de um amigo de Ana, num beco estreito e escondido, em que experimentamos picadas regionais. Pimientos grelhados, peixinhos fritos e, no meu caso, vieiras. A coloquei na boca, pedaço por pedaço deixando que o sabor fosse pouco a pouco tomando conta da boca, claro, pão para passar no prato, limpando os restos de molho. Para acompanhar uma clara com limón - bebida que consiste em meio copo de cerveja preenchido com suco de limão galego. Estupidamente gelado e refrescante a mistura é deliciosa, daquelas que dá vontade de tomar várias. 

A sobremesa não poderia ser outra, pedi a tradicional torta de santiago, mais por uma necessidade incontrolável de experimentar que por fome.  Um leve sabor de laranja permeia a massa fresca e macia de trigo e o sabor vai se abrindo em flores dentro da boca, enchendo de prazer quase sexual quem a experimenta. A torta, especialidade do lugar, é imperdível.

Terminada a comilança, partimos para uma cafeteria debruçada sobre a colina, num belíssimo jardim interno, onde seguimos por toda a tarde entre copas de água, licores e cafés, trocando confidências e sonhos.  As horas passaram lentas enquanto ríamos e contávamos histórias muito nossas, "conversas de menina," histórias de 6 mulheres de diferentes nacionalidades que o destino reuniu em Compostela, naquela tarde de verão inesquecível. 

Fim de tarde, fizemos nosso próprio percurso, uma caminhada por dentro sob o olhar atento e atencioso umas das outras. Merece um brinde: Que o dia em Santiago seja apenas o primeiro de uma série de brindes e parcerias com essas mulheres guerreiras e doces de Santiago de Compostela, de Berlim e de Buenos Aires!

P.S. Sem a foto planejada, mas como todo meu coração.