Anita,
Apenas agora tomei ciência de toda essa confusão. Como alguém se fez passar por mim? Com que finalidade? Não posso compreender esse apropriar-se da identidade alheia e criar histórias e gerar expectativas falsas.
Sei que fui omisso por todo o tempo em que estive no norte [estou tentando voltar]. Quanto mais ia em direção ao interior do país, mais mergulhava em meu próprio interior. Precisava do afastamento. Fiz descobertas profundas e muitas vezes dolorosas sobre como fui forjando uma personalidade confusa, intensa e (ir)real.
O que proponho é ir aos poucos tornando-me transparente com você, na medida em que minha auto percepção vai clareando. Acredite, minha pequena, não é simples para mim, nem indolor. Por favor, seja gentil e paciente nesse momento e leia com atenção minhas partilhas, se ainda houver esperança para sermos pelo menos bons amigos. Elas são feitas com um sentido de honestidade que só agora experimento na vida.
Acredito que quando era pequeno, era uma criança sensível e curiosa, mas o ambiente emocional a minha volta raramente era harmonioso. Nunca lhe disse isso, mas meu pai era alcoolista. Um homem violento. E minha mãe vivia ansiosa por manter as coisas sob controle [como se fosse possível controlar o incontrolável]. Toda a energia vital dela era canalizada por evitar o inevitável: as bebedeiras e as aventuras de meu pai, com todas as suas dolorosas consequencias.
Eu era uma criança, presa entre dois adultos em guerra. Tantas vezes tentei acreditar num mundo lógico e emocionalmente consistente. Precisava de alguma maneira suavizar dentro de mim os terríveis extremos emocionais e a violência e sofrimento a minha volta. No meio de tudo, jamais pude realmente acreditar que era amado, nem podia - por paradoxal que pareça - deixar de acreditar. Nesse cenário de incoerência e inconsistência emocional uma raiva venenosa foi se infiltrando em meu coração sem que eu me desse conta dela.
Vivia subjugado pela dor, perda ou sentimentos de abandono. Foram poucas as experiências que me deram o sentido de que eu tinha valor suficiente. Para meu consolo, havia a memória do contato físico com minha mãe nos primeiros anos de vida.
Habitualmente ela não demonstrava nada fisicamente, exceto para me embalar e me fazer dormir quando eu acordava em meio a pesadelos, ou punir-me com espancamentos. Mas quando eu estava doente e com febre, ela me levava para sua cama e dormíamos bem juntinhos, meu corpo de menino todo enrolado, coberto e envolto da cabeça aos pés pelo calor materno. Esse calor envolvente e acariciante me marcou com uma poderosa mensagem: 'estou alimentado, protegido e desejado; eu sou amado'.
Nesse período eu odiava e idolatrava meu pai; e odiava minha mãe [inconscientemente] por ser incapaz de acabar com o caos familiar diário. Ainda assim, ansiava pela mensagem de aceitação que aquelas noites protetoras me davam. Assim foi que emergi da primeira infância com algumas idéias muito estranhas, ainda que compreensíveis: 'a única maneira de saber que sou amado é através do contato físico', 'nunca devo revelar meus sentimentos, por que ser sensível é ser vulnerável, e ser vulnerável é sofrer consequencias de ser considerado um fracote'.
Você pode imaginar, querida Anita, o que é isso na formação da personalidade de um menino/homem? Não tem sido fácil tomar contato com tal conteúdo, mas sigo firme no propósito de saber [afinal] quem sou, e com isso limpar as idéias tortas que me tornaram tão confuso e paradoxal em minha expressão de afeto.
Desejo que esta carta seja apenas a primeira de um novo capítulo em nosso relacionamento. Será que ainda há esperança de algum tipo de relacionamento entre nós? Desejo ainda que a honestidade e transparência com que me dirijo a você possam contribuir para limpar nosso terreno, se é que ainda podemos falar nisso.
Deixo você menos confuso do que quando parti, menos intenso, mas [acredito] um pouco mais próximo do real, pedindo apenas, se é que posso pedir algo, que se afaste daquele falso Caio que se apresentou a você e abra espaço para ao menos conhecer esse que aqui se expõe.
Com afeto,
Caio Marques
Nenhum comentário:
Postar um comentário
O que você acha?