quinta-feira, 4 de junho de 2009

A Linguagem




''A linguagem não é apenas um luxo intelectual, mas uma parte essencial na luta pela libertação das mulheres''. (Mary Daly - 1984 e Julia Kristeva - 1980)




Dia desses ouvi de um amigo o seguinte comentário: ' pô, não só as mulheres têm direito de expressar seus desejos, porque não 'Todo Ser Humano tem o direito a...'? Concordo integralmente com o comentário.No entanto, quando decidi escrever o Blog da Maria não tinha, como de fato, talvez ainda não tenha, clareza sobre a linha que seguiria, mas tinha um norte: Visibilizar os direitos mais sutis, tantas vezes vilipendiados, esquecidos, sufocados pela sociedade, pela cultura e pelos contemporâneos dias corridos em que apenas sobrevivemos.


Ao clamar que TODA MULHER TEM DIREITO... digo sim, que todos os seres humanos têm direitos e rio sozinha do efeito que isso causa cada vez que um homem lê tais textos. Em nossa sociedade o uso da palavra articulada ou escrita como meio de comunicação supõe o masculino genérico para expressarmos idéias, pensamentos, sentimentos e referências a outras pessoas. A linguagem, contudo, como sistema de significação, nunca é neutra, expressa sua cultura e é permeada pelas relações sociais de um determinado momento histórico(Scott, 1990)*. Por isso, esta Maria em sua linguagem acena ininterruptamente com uma idéia.


É de notar que desde a década de 60 começou a ser constatado que a linguagem nas sociedades ocidentais, por ser um sistema simbólico profundamente arraigado em estruturas sociais patriarcais, não só refletia mas também enfatizava a supremacia masculina. Devem estar pensando, 'eita, lá vem o exagero dos discursos feministas'. Calma, não se afobem, mas vamos acompanhar a experiência que vivi a poucos minutos.


Lia eu, feliz, matéria competente e sensível publicada por Época desta semana, a respeito do nascimento da 'primeira nova família brasileira'. Inscrita na seção Sociedade/Justiça e assinada por Eliane Brum, a reportagem trazia a público o caso de Michele Kamers e Carla Cumiotto. Elas pediam o direito de registrarem no nome das duas seu filho e sua filha, gêmeos. O juiz Cairo Roberto Rodrigues Madruga, da 8ª Vara de Família e Sucessões de Porto Alegre, corajosamente decidiu pela coincidência entre direito e justiça, concedendo a elas e às crianças o direito ao reconhecimento legal da família constituída. Percebam os versados em direito que não falei em entidade familiar, eu disse: fa-mí-lia, embora este seja tema para outro texto


A matéria recheada de todo o histórico do casal, das emoções da gestação e do parto, a escolha de nomes, de escola faz uma belíssima apuração do fato. Com sensibilidade e competência coloca diante de nós, homens e mulheres, a importância da família na sociedade, tempos em que o modelo familiar ainda é questionado (e muito). Mostra a relação entre duas pessoas baseada em amor, em decisões partilhadas, em respeito mútuo, independente da orientação sexual do casal. Por fim, traz luz sobre - mais importante - o respeito às diferenças e o exercício cidadão deste direito. Recomendo a leitura da matéria.


No entanto, não por culpa de Eliane Brum, o sistema patriarcal em que fomos criad@s e educad@s invisibiliza a mulher em algumas passagens do texto, chegando a saltar aos olhos em dado momento. A jornalista já no preâmbulo da matéria ao se referir a Joaquim Amândio e Maria Clara diz:
'seus filhos gêmeos',

 o uso genérico, neste caso, mostra a invisibilidade da menina. Em nossa sociedade, lamentavelmente, o sexo masculino ainda é o prioritário. Por que temos de ser chamadas de ele nas formas genéricas? pergunta Carmem Caldas-Coulthard, em seu artigo Caro Colega: exclusão linguística e invisibilidade (2007).


Infelizmente não pára por aí. Quando chegava ao final da matéria, entusiasmada e ainda emocionada com a avançada decisão do juiz e com a corajosa demonstração de cidadania de Michele e Carla ao divulgar sua história, deparei-me com a reafirmação máxima da cultura patriarcal em que ainda hoje estamos mergulhadas, em parágrafo que reproduzirei na íntegra.

A história de Joaquim Amândio e Maria Clara está documentada desde o primeiro Kamers e o primeiro Cumiotto que chegaram ao Brasil. Os retratos antigos dividem as paredes da casa com as fotografias que contam o romance de seus pais (grifo nosso) e seus dois primeiros anos de vida.



Por que o genérico de pai e mãe é pais? Pior, porque o genérico de mãe e mãe (ou pami como quis ser chamada Michele) é pais? Neste caso, não apenas uma mulher foi invisibilizada, mas duas, numa única palavrinha de quatro letras. O lugar do escritor, do crítico, do pensador e do pai está aí para definir o lugar do sujeito que fala em nome da cultura, da cidadania e da hegemonia (Schimidt, 2009). Essas mulheres são sujeito(?) de sua história, protagonistas de uma revolução silenciosa quem vem acontecendo no Brasil, e por uma palavra foram invisibilizadas.


O patriarcado está aí, caríssima Eliane Brum, enraizado em você como na maioria absoluta de nós, mulheres e homens. Talvez seja a razão pela qual, apesar de termos cerca de 81% de mulheres nas principais redações brasileiras, ainda vimos reproduzindo e enfatizando inconscientemente o modelo aprendido na família, na escola, na sociedade em que vivemos: Nossa cultura. Algumas de nós chega a achar chato tocar no assunto. Vale a pena pensar sobre:


TODA MULHER TEM DIREITO A SER VISÍVEL, INCLUSIVE NA LINGUAGEM.


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