quarta-feira, 30 de março de 2011

Tristeza é a Falta de Alegria: Hélio Leites



Decidi olhar para dentro. Hoje faço o que gosto. Quero não pensar. Quero imaginar e fazer.

Fazer o que gosto, levar arte e cultura por toda parte.

Não me fale em ingressos, sou adepta da ação colaborativa. Juntos, todos/as, pela promoção da cultura, pelo acesso à fruição e à produção cultural.

Arte e Cultura como propulsores da economia. Economia da Cultura.

terça-feira, 22 de março de 2011

Diário de Bordo Porto Alegre IV

Porto Alegre entrou em mim para o resto da vida. Aqui estou, delicadamente tomando a cidade nas mãos, percorrendo suas ruas corriqueiras, deslizando pelos endereços de todos os dias. Sorvendo os sabores da cidade, flutuando nos acentos típicos da fala gaúcha.

Adoro conhecer novos lugares e conhecer para mim é uma experiência sensorial, multi sensorial. Preciso sentir os cheiros, minha pele tem de estabelecer contato com as ruas e as praças, preciso dos sons e dos silêncios, do movimento e das pausas das avenidas e dos semáforos; claro, preciso sentir os gostos da cidade. Não os gostos forjados em clubes de gastronomia - que são ótimos para outros propósitos - mas o sabor que vem das esquinas, das tradições, das origens étnicas, do dia a dia de cada lugar.

Ontem foi dia de provar o Kibe do Brique, que fica ali na Felipe Camarão, bairro Bonfim. Não podia deixar de experimentar.  O bairro, lugar de forte influência judaica, abraça o Kibe do Brique e suspiro de orgulho de ser brasileira, onde árabes e judeus são vizinhos, são sócios, são amigos.

O kibe é imperdível, o preço honesto, o atendimento é simpaticíssimo e o lugar um charme. Precisa dizer mais? Arrependimento apenas de não ter provado o amanteigado de tâmaras - eu amo - mas hei senti-lo completamente antes de partir. (por sorte estou hospedada a dois passos desse pequeno paraíso). Mas não apenas de sabores é feita uma cidade.

Tomei um coletivo hoje cedo em direção a Menino Deus, bairro de Porto Alegre onde viveu Caio - Caio Fernando Abreu -  a ausência mais presente dos últimos tempos, com quem dialógo diariamente, a quem escrevo turbilhões de idéias esperando uma resposta, um alento. Bairro cujo nome tem acordes de Caetano, sussurrando em meus ouvidos. Fui lá. Fui sentir o cheiro e permitir-me deslizar por suas ruas estreitas, profundas, reveladoras da essência tímida e silenciosa.

Mergulhei nas profundezas da Peri Machado até respirar fundo diante da praça coberta de folhas ainda não secas anunciando o outono que se avizinha por aqui. Foi bom, sensorialmente bom e cheio de lembranças que não tenho.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Hoje vou de...Boaventura de Souza Santos: Mais sobre Mulheres

As mulheres não são homens

A cultura patriarcal tem uma dimensão particularmente perversa: a de criar a ideia na opinião pública que as mulheres são oprimidas e, como tal, vítimas indefesas e silenciosas. Este estereótipo torna possível ignorar ou desvalorizar as lutas de resistência e a capacidade de inovação política das mulheres.

No passado dia 8 de março celebrou-se o Dia Internacional da Mulher. Os dias ou anos internacionais não são, em geral, celebrações. São, pelo contrário, modos de assinalar que há pouco para celebrar e muito para denunciar e transformar. Não há natureza humana assexuada;
há homens e mulheres. Falar de natureza humana sem falar na diferença sexual é ocultar que a “metade” das mulheres vale menos que a dos homens. Sob formas que variam consoante o tempo e o lugar, as mulheres têm sido consideradas como seres cuja humanidade é problemática (mais perigosa ou menos capaz) quando comparada com a dos homens. À dominação sexual que este preconceito gera chamamos patriarcado e ao senso comum que o alimenta e reproduz, cultura patriarcal. 


A persistência histórica desta cultura é tão forte que mesmo nas regiões do mundo em que ela foi oficialmente superada pela consagração constitucional da igualdade sexual, as práticas quotidianas das instituições e das relações sociais continuam a reproduzir o preconceito e a desigualdade. Ser feminista hoje significa reconhecer que tal discriminação existe e é injusta e desejar activamente que ela seja eliminada. Nas actuais condições históricas, falar de natureza humana como se ela fosse sexualmente indiferente, seja no plano filosófico seja no plano político, é pactuar com o patriarcado.



A cultura patriarcal vem de longe e atravessa tanto a cultura ocidental como as culturas africanas, indígenas e islâmicas. Para Aristóteles, a mulher é um homem mutilado e para São Tomás de Aquino, sendo o homem o elemento activo da procriação, o nascimento de uma mulher é sinal da debilidade do procriador. Esta cultura, ancorada por vezes em textos sagrados (Bíblia e Corão), tem estado sempre ao serviço da economia política dominante que, nos tempos modernos, tem sido o capitalismo e o colonialismo. Em Three Guineas (1938), em resposta a um pedido de apoio financeiro para o esforço de guerra, Virginia Woolf recusa, lembrando a secundarização das mulheres na nação, e afirma provocatoriamente: “Como mulher, não tenho país. Como mulher, não quero ter país. Como mulher, o meu país é o mundo inteiro”. 



Durante a ditadura portuguesa, as Novas Cartas Portuguesas publicadas em 1972 por Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, denunciavam o patriarcado como parte da estrutura fascista que sustentava a guerra colonial em África. "Angola é nossa" era o correlato de "as mulheres são nossas (de nós, homens)" e no sexo delas se defendia a honra deles. O livro foi imediatamente apreendido porque justamente percebido como um libelo contra a guerra colonial e as autoras só não foram julgadas porque entretanto ocorreu a Revolução dos Cravos em 25 de Abril de 1974.



A violência que a opressão sexual implica ocorre sob duas formas, hardcore e softcore. A versão hardcore é o catálogo da vergonha e do horror do mundo. Em Portugal, morreram 43 mulheres em 2010, vítimas de violência doméstica. Na Cidade Juarez (México) foram assassinadas nos últimos anos 427 mulheres, todas jovens e pobres, trabalhadoras nas fábricas do capitalismo selvagem, as maquiladoras, um crime organizado hoje conhecido por femicídio. Em vários países de África, continua a praticar-se a mutilação genital. Na Arábia Saudita, até há pouco, as mulheres nem sequer tinham certificado de nascimento. No Irão, a vida de uma mulher vale metade da do homem num acidente de viação; em tribunal, o testemunho de um homem vale tanto quanto o de duas mulheres; a mulher pode ser apedrejada até à morte em caso de adultério, prática, aliás, proibida na maioria dos países de cultura islâmica.



A versão softcore é insidiosa e silenciosa e ocorre no seio das famílias, instituições e comunidades, não porque as mulheres sejam inferiores mas, pelo contrário, porque são consideradas superiores no seu espírito de abnegação e na sua disponibilidade para ajudar em tempos difíceis. Porque é uma disposição natural. não há sequer que lhes perguntar se aceitam os encargos ou sob que condições. Em Portugal, por exemplo, os cortes nas despesas sociais do Estado actualmente em curso vitimizam em particular as mulheres. As mulheres são as principais provedoras do cuidado a dependentes (crianças, velhos, doentes, pessoas com deficiência). Se, com o encerramento dos hospitais psiquiátricos, os doentes mentais são devolvidos às famílias, o cuidado fica a cargo das mulheres. A impossibilidade de conciliar o trabalho remunerado com o trabalho doméstico faz com que Portugal tenha um dos valores mais baixos de fecundidade do mundo. Cuidar dos vivos torna-se incompatível com desejar mais vivos.



Mas a cultura patriarcal tem, em certos contextos, uma outra dimensão particularmente perversa: a de criar a ideia na opinião pública que as mulheres são oprimidas e, como tal, vítimas indefesas e silenciosas.



Este estereótipo torna possível ignorar ou desvalorizar as lutas de resistência e a capacidade de inovação política das mulheres. É assim que se ignora o papel fundamental das mulheres na revolução do Egipto ou na luta contra a pilhagem da terra na Índia; a acção política das mulheres que lideram os municípios em tantas pequenas cidades africanas e a sua luta contra o machismo dos lideres partidários que bloqueiam o acesso das mulheres ao poder político nacional; a luta incessante e cheia de riscos pela punição dos criminosos levada a cabo pelas mães das jovens assassinadas em Cidade Juarez; as conquistas das mulheres indígenas e islâmicas na luta pela igualdade e pelo respeito da diferença,transformando por dentro as culturas a que pertencem; as práticas inovadoras de defesa da agricultura familiar e das sementes tradicionais das mulheres do Quénia e de tantos outros países de África; a resposta das mulheres palestinianas quando perguntadas por auto-convencidas feministas europeias sobre o uso de contraceptivos: “na Palestina, ter filhos é lutar contra a limpeza étnica que Israel impõe ao nosso povo”.


Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).

Artigo Publicado na revista Carta Maior, sessão Debate Aberto: