Querida R.,
Sinto saudades de algo indizível que tive e perdi. Sinto saudades do afeto, sinto saudades de ti.
Sinto-me feliz por lê-la realizada e feliz com as perspectivas de voltar a terra natal. Sua carta foi um afago necessário.
Por aqui a vida segue seu curso, com obstáculos transpostos a cada instante pelo frescor das águas passageiras. Prefiro assim acreditar, por isso me chamas sonhadora.
Dia desses caminhava pela praia fim de tarde, predileta hora do dia, quando avistei uma Menina. Ela se encantara com uma grande Concha, que encalhara na areia. Olhava-a fascinada.
Sentei-me para observar a cena, enquanto a brisa passava descompromissada pelos cabelos - meus e da menina - sem rumo certo.
A curiosidade fluía na ponta dos dedos da criança, enquanto seus olhinhos brilhantes, sorrateiros procuravam a voz da vigilância e a concha reluzia ante os raios de sol que teimavam em permanecer aquela hora.
Vendo-se livre e sentindo-se fascinada, estendeu a mãozinha afoita em direção à concha, que lhe retribuiu o afago, abrindo uma breve fenda macia em sua casca rija. Imediatamente, não apenas sorria a eMenina com os olhos e mãos, como com todo o rosto infantil. Iluminara-se e pulava e dançava rodopiando na areia a conquista.
Investiu mais uma vez em direção à Concha, que lhe sorriu um sorriso de concha, macio e desajeitado, mais amplo e afetuoso que antes. A garotinha exultava e queria mais e mais. Aprofundavam - a Menina e a Concha - o afeto e a confiança.
A Concha, no entanto, por sua própria natureza, tinha limites. Não era possível abrir-se mais, por mais que tentasse. Mas a criança, por sua própria condição, não compreendeu. E as crianças podem ser cruéias às vezes: queimam rabo de gato, colocam sal em lesmas, matam formigas.
A Menina, como criança que era, não entendeu os limites da Concha e quis abrir-lhe ainda mais, quis morar dentro dela. As mãozinhas nervosas, então, deixaram por um instante a delicadeza de que necessita a Concha. A garota insiste, tenta, quer abrí-la a todo custo. Busca colher, pazinha, faca, tira da sacola mágica um machado, um serrote, usa todas as ferramentas disponíveis até que encontra bem no fundo do saco algo que lhe poderia ajudar a abrir a Concha.
Saca, rápida, o fórceps com que viola a Concha, cruel como apenas as crianças feridas podem ser, revela toda a fragilidade da Concha. Esta, constrangida por ver-se assim exposta, (en)cerra-se em sua vergonha e dor para não mais se abrir.
A Menina inconsolável grita e esperneia, faz birra, sentindo-se abandonada, até que exausta dá-se conta da dor que causara à Concha. Senta-se na areia desolada, balança seu corpinho para frente e para trás em busca de consolo, enquanto de longe tudo registro. Percebo seu olhar distante, e lágrimas que teimam em lavar o rostinho triste: Perdera a Concha de seus sonhos infantis.
O sol já se deitava quando me perguntei: 'teria eu sido uma criança obstinada?' Naquele momento, querida amiga, uma nuvem encobre o pouco de sol que ainda restava, apagando o meu dia antes da hora.
Sua amiga sempre,
Anita Lopes
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